04 abril 2006

O mito de Sísifo


















Os deuses condenaram Sísifo a incessantemente rolar uma rocha até o topo de uma montanha, de onde a pedra cairia de volta devido ao seu próprio peso.

Eles pensaram, com alguma razão, que não há punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.

Acreditando em Homero, Sísifo foi o mais sábio e prudente dos mortais. Entretando, de acordo com outra tradição, ele foi designado a praticar a profissão de salteador.Eu não vejo nenhuma contradição nisto.

As opiniões diferem quanto às razões pelas quais ele se tornou o inútil trabalhador do subterrâneo.

Sísifo é o herói absurdo. Ele o é, tanto pelas suas paixões quanto pela sua tortura.
Seu desdém pelos deuses, seu ódio pela morte e sua paixão pela vida fizeram com que ele recebesse aquele inexprimível castigo no qual todo seu ser se esforça para executar absolutamente nada. Este é o preço que deve ser pago pelas paixões neste mundo.
Nada nos é dito sobre Sísifo no inferno. Mitos são feitos para a imaginação soprar vida neles.

Quanto a este mito, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo esforçando-se para levantar a imensa pedra, rolá-la e empurrá-la ladeira acima centenas de vezes; vê-se o rosto comprimido, a face apertada contra a pedra, o ombro que escora a massa recoberta de terra, os pés apoiando, o impulso com os braços estendidos, a segurança totalmente humana de duas mãos cobertas de terra.
Ao final deste longo esforço medido pelo espaço e tempo infinitos, o objectivo é atingido.
Então Sísifo observa a rocha rolar para baixo em poucos segundos, em direção ao reino dos mortos, de onde ele terá que empurrá-la novamente em direção ao cume.
Ele desce para a planície. É durante este retorno, esta pausa, que interessa analisar em Sísifo.

Um rosto que trabalhou tão próximo à pedra, já é a própria pedra!
Eu vejo aquele homem descendo com um passo muito medido, em direção ao tormento que ele sabe que nunca terá fim.
Aquela hora, que é como um momento de respiração, que sempre voltará assim como seu sofrimento; é a hora da consciência.
Em cada um destes momentos, quando ele deixa as alturas e gradualmente mergulha no covil dos deuses, ele é superior ao seu destino.
Ele é mais forte do que sua pedra.
Se este mito é trágico, é porquê seu herói é consciente. Onde estaria realmente sua tortura se a cada passo a esperança de prosperar o sustentasse ?
O trabalhador de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas, e seu destino não é menos absurdo.
Mas é trágico apenas nos raros momentos em que ele toma consciência.
Sísifo, proletário dos deuses, impotente e rebelde, sabe a total extensão de sua miserável condição: é nisso que ele pensa durante sua descida.

A lucidez que deveria constituir sua tortura ao mesmo tempo coroa sua vitória.
Não há destino que não possa ser superado pelo desprezo.
Se desta maneira, a descida é realizada às vezes com tristeza, também pode ser realizada com alegria. Esta palavra não é exagerada.
Sísifo retorna em direção à sua rocha; o sofrimento estava no início.
Quando as imagens da Terra aderem-se com muita força à memória, quando o chamado da felicidade torna-se muito insistente, acontece da melancolia aparecer no coração do homem: esta é a vitória da rocha, esta é a própria rocha.

O sofrimento sem limites é muito pesado para se suportar.
Mas verdades esmagadoras perecem quando tornam-se conhecidas.

Toda a alegria silenciosa de Sísifo está contida nisto. O seu destino pertence a ele.
A sua rocha é algo semelhante ao homem absurdo quando contempla seu tormento; silencia todos os ídolos.
No universo subitamente devolvido ao seu silêncio as pequenas vozes extremamente fascinantes do mundo elevam-se.

A inconsciência, os chamados secretos, os convites de todos os aspectos, eles são o reverso necessário e o preço da vitória.
Não há sol sem sombra, e é essencial conhecer a noite.
O homem absurdo diz sim e os seus esforços doravante serão incessantes. Se há um destino pessoal, não há um destino superior, ou há, mas um que ele conclui que é inevitável e desprezível.
Para o restante, ele reconhece a si mesmo como o mestre de seus dias.
No momento subtil quando o homem olha para trás na sua vida, Sísifo retornando à sua pedra, neste modesto giro, ele contempla aquela série de acções não relacionadas que formam o seu destino, criado por ele, combinados e sujeitos ao olhar de sua memória e logo selados por sua morte.
Assim, convencido da origem totalmente humana de tudo o que é humano, o homem cego, ansioso para ver, que sabe que a noite não tem fim, este homem permanece em movimento. A rocha ainda está a rolar.

Eu deixo Sísifo no pé da montanha! Sempre encontra a sua carga novamente.
Mas Sísifo ensina a mais alta honestidade, que nega os deuses e ergue rochas.
Ele também conclui que está tudo bem. O universo, de agora em diante sem um mestre, não lhe parece nem estéril nem inútil.
Cada átomo daquela pedra, cada lasca mineral daquela montanha repleta de noite, em si próprio forma um mundo. A própria luta em direcção às alturas é suficiente para preencher o coração de um homem.

Deve-se imaginar Sísifo feliz.

Albert Camus




resultado de interessantes conversas de «filosofia de domingo» com mr.Revol ;)

2 comentários:

NRF disse...

BRILHANTE***************

Taliesin disse...

Este post faz-me regressar ao passado, cerca de 12 a 13 anos, onde recordo com grande saudade o meu professor de Filosofia, que entretanto desapareceu deste mundo. Não que as forças que tornam a vida desagradável fossem mais fortes do que as que nos mostram o “sentido”… mas simplesmente, tinha chegado a sua hora…
Questões filosóficas…
Sísifo é sem duvida um bom exemplo de uma vida mecânica, um homem absurdo, mas não será Mersault (O Estrangeiro) também um homem absurdo? Onde tudo não passa de uma longa sucessão de dias, semelhantes uns aos outros, longas horas sentado numa secretária? Onde tudo é aborrecimento e cansaço e assim encontramos em Mersault a compreensão do crime…
Também não devemos esquecer que na obra de Camus a felicidade é um lugar comum…Deve-se imaginar Sísifo feliz…e Mersault não? Embora as personagens da obra camusiana procurem essa “felicidade” .Terão as personagens de Camus essa palavra “felicidade” mas com aspectos diferentes?
Bem..acho que isto dava para muita conversa…