30 setembro 2009

#24 doença.crónica

subimos umas escadas que pareciam não acabar, forrada com aquele cheiro a bafio e a gatos que têm as escadas de todos os prédios antigos.
os degraus rangiam à nossa passagem.. ouvia-se o barulho das televisões e algumas vozes, o pingar da água dos canos.
ela deu um leve suspiro e subiu mais três degraus
não andarás tu também a querer distrair-me para ver se eu me esqueço.. como eles dizem?
talvez ela tivesse razão. mas não era bem para esquecer, como ela dizia.. era mais para a distrair. ela não esquece porque ninguém esquece assim de um momento para o outro.
mas confesso que não fui capaz de lhe explicar.
ao invés disso disse-lhe para não ser parva, que se lhe tinha dito para vir comigo era porque achava mais divertido do que ter de fazê-lo sozinho.
ela parecia não prestar atenção, ocupada que estava a contar os lances de escada que ainda faltavam.
estávamos precisamente no 3º andar quando me lembrei que não lhe deveria ter dito aquilo.. e quando estávamos já no 4º pensei que talvez não tivesse feito diferença. quando decidi deixar de pensar no assunto estávamos já no 5º andar e a tocar à campainha da porta.
do outro lado um sonolento arrastar de chinelos.
a porta abre-se e surge uma mulher dentro de uma bata às flores, flores que em tempos teriam sido esverdeadas, agora já nada mais são do manchas, manchas dentro de outras manchas.. e de dentro da bata olha-nos com testa franzida.
deixa-nos entrar para uma sala enorme, quase sem móveis, apenas no meio se destaca um enorme aquário.

sentámonos em silêncio.
não sei quanto tempo teria passado quando ela cortou o ar ao dizer:
- todas as coisas têm um coração.. isto era o que eu pensava quando era pequena. e por isso tocava os objectos todos para lhes sentir a pulsação.
bastava a ponta dos meus dedos sobre a mesa, e logo a mesa me respondia, batendo pausadamente ao ritmo do meu. esse fenómeno parecia-me perfeito! -- e no final da frase
esboça um sorriso de nostalgia.
quando acordava era como se todas as coisas acordassem comigo.
eu tinha então uma ideia bem estranha do que era o coração e a vida.
todas estas coisas me parecem muito complicadas agora que já sei que não era o coração das coisas que ouvia mas sim apenas o meu.

2 comentários:

Vera Isabel disse...

(^^)d

suru disse...

Adorei! :-)
Escreve mais disto!!!!