07 fevereiro 2006

Velha Infância

















Hoje amanheci com uma enorme e inexplicável saudade da minha velha infância..
não sei porquê, devo estar num daqueles dias em que me sinto particularmente saudosista.. mas talvez seja porque foram anos verdadeiramente felizes e não existem outros momentos a recordar a não ser o que posso chamar de bons momentos que gosto de visitar quando a minha mente para lá escapa..
Como hoje.. e esses momentos estão tão presentes que parece que foram ontem.. apesar de já se terem passado tantos anos, mesmo sem eu me dar conta..
Mas estão gravados em cantinhos da memória, são como livros que de vez em quando gostamos de reler simplesmente porque gostamos, e apesar de já sabermos de cor cada página.. continuamos porque nos apetece.
A verdade é que assusta olhar para trás e ver como o tempo soube passar tão depressa fazendo esquecer como é que de repente a menina dos olhos grandes e respondona que corria electricamente por cada recanto desta casa ficou de repente a rapariga que sou hoje, e no entanto em tantas coisas vejo que essa menina ainda está aqui dentro..
Pergunto-me se me irei lembrar sempre desses momentos ou se um dia a menina desaparecerá sem aviso.. esconder-se-à ela em algum cantinho cada vez mais escondido donde eu não consiga buscá-la mais?
Mas hoje está bem presente.. apetece-me poder voltar atrás no tempo por breves instantes e voltar a ter oportunidade de fazer todos os disparates e inconsequências que por sermos pequeninos são sempre desculpáveis..
Correr rua fora, cantar e rir que nem uma tola.. deitar-me no colo da minha avó e ouvi-la contar histórias do que os meninos faziam quando ela era pequenina e eu sentir-me tão bem ali naquele colo, embalada na voz dela..
Pedir-lhe para irmos para a cozinha e insistir para que me deixásse passar horas com as mãos metidas em àgua e enfarinhada até á ponta do nariz e com uma felicidade a arrebentar dentro do peito.
Fazer birras porque não queria comer e ouvi-la dizer que se continuasse a ser assim teimosa ia chamar o homem do saco.. e eu não acreditava.. até que se ouvia ao longe o som da harmónica do amolador de facas que surgia pelo ar em dias que anteviam chuva e ela dizia.. «Vês Sofia.. ele já lá vem..» e eu corria para ela e lá comia tudo mas a desconfiar porque se ria ela tanto..
Tenho tantas saudades tuas.. saberás tu a falta que ainda hoje me fazes.. queria dizer-te que gosto de ti.. e ver se agora já passados tantos tempos ainda caberia no teu colo.. e deixar-me embalar pelas tuas histórias, cheirar aquele teu perfume que tu me deixavas pôr às vezes quando dizias que me portava bem.
Passear com os meus pais por jardins desta cidade que aos poucos mudou.. pedir com os olhitos arregalados ao meu pai para me fazer rodopiar pelos ares vezes sem conta e nunca me fartar daquela sensação boa de vertigem.
Apanhar aquelas flores pequenas que nasciam nas relvas dos jardins e correr a dá-las à minha mãe, como se lhe estivesse a dar o maior tesouro do mundo.
Brincar com balões que me pareciam maiores que eu e quando ninguém via largá-los e ficar a vê-los partir rumo ao céu deixando-me a imaginar para onde iriam.. e se ficariam para sempre no ar..
Ver o meu irmão a primeira vez e não saber sequer o que raio seria isso de 'ter um irmão' mas gostar de ver um ser tão pequeno e gordinho que chorava desalmadamente e pensar.. «vou cuidar de ti.. porque sou maior que tu.. por isso não chores, eu estou aqui.»
Lembro-me de o ver tempos mais tarde a vandalizar tudo o que era meu, quando andava pela casa e caía a cada dois ou três passos ainda vacilantes.. e eu pensar.. «tens de ter paciência, agora és a mais velha.»
Lembro-me de tentar aprender a jogar futebol como deve ser e de me esfolar toda mas nunca dar para isso.. de tentar aprender a andar de bicicleta sem cair mais do que duas vezes seguidas.. e de ter agora pequenas cicatrizes espalhadas um pouco pelo meu corpo como um mapa de todas as pequenas asneiras que fiz.. inconsequentemente.
Lembro-me da voz do meu avô quando as frase começavam «quando eu era pequeno..» e ficar a ouvi-lo de boca aberta mesmo sem conseguir imaginá-lo da minha idade.. mas agora sei que quando ele começava a falar assim dessa altura, era a vez dele viajar pelos anos que para ele tinham passado e sentir-se então um menino a trepar ao alto das àrvores e fazer as suas patifarias.
Lembro-me do primeiro beijo que dei quando era tão pequena que nem sabia sequer o que era um beijo e não senti nada mais do que cócegas e uma súbita vontade de rir..
Do sabor do leite com chocolate que gostava de beber ainda a ferver.
De esvaziar uma caixa de pastilhas inteiras para dentro da boca e ficar a mastigá-las teimosamente e nem conseguir falar por ter a boca completamente cheia.
Lembro-me do sabor dos Sugos e das brigas parvas com o meu irmão para ver quem comia as últimas gomas..
Lembro-me de um quarto completamente desarrumando onde peças de Lego se misturavam com livros e bonecos e tudo convivia em plena harmonia, excepto na opinião da minha mãe que tentava impôr alguma ordem naquele pequeno mundo de faz de conta..
Lembro-me de descobrir que o Pai Natal nunca existiu.. e de abrir as prendas que se escondiam nos armários até ao dia de Natal e de fazer uma cara de surpresa no próprio dia como se nunca as tivésse visto antes.
Lembro-me de tentar enganar o meu irmão que sim, que existia o tal do homem das barbas brancas e que ele não falhava com a entrega de tudo aquilo que ele pedisse e de ver o ar de felicidade dele.
Lembro-me de tantas coisas.. coisas que não quero mesmo esquecer..
O tempo às vezes passa mesmo depressa demais.. mas ainda bem que existe a memória para nos fazer regressar ao passado e poder reviver momentos que por serem tão banais são aqueles que mais nos marcam.
Um dia vou gostar de contar todas estas histórias tão banais com os mesmos olhos a brilharem e o mesmo aperto no coração.
O texto saiu-me como num sopro.. vou ficar a perder-me pelos cantinhos da minha infância.

ao som de Sven Van Hees - The Sun goes down

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